Um blog sobre coisa alguma.

27.3.09

Segredos

Em casa nunca havia muito espaço para conversas. Entre a fala e a ação, a segunda predominava com certa violência. Isso não fez dela um monstro ou uma aberração, mas deixou algumas sequelas no comportamento. Pelo menos era o que parecia nos bilhetes escolares e conversas dos colegas.
A família seguia um discurso pronto, desses que podem ser repetidos em qualquer situação, uma espécie de auto-ajuda pré-fabricada que se espalhava pela mesa do jantar sempre que algum assunto relevante precisava ser discutido. A família se bastava em si. Eles se protegiam tanto que faziam com que ela se sentisse mais insegura. Escondia suas diferenças numa caixinha, escondida dentro do armário, que só foi descoberta na hora de desocupar o quarto para o inquilino.
Nela, escondida entre as calcinhas de renda e as meia-calças, um bilhete.
"Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Afirmo que não o tenho. Mas tenho medo de mim e de tudo que sinto e não controlo. Guardo esta carta e tudo que desejo nesta caixa. Minha vontade era me despir do meu pudor e vestir o restante. Mas você não me perdoaria. E talvez não se perdoasse também.”
O pai entendeu aquelas palavras melhor do que se podia imaginar.
Talvez dividisse o desejo com a filha ou fosse só seu ego inchando e atrapalhando o entendimento de tudo que acontecia.
A mãe nunca chegou a saber da caixa. Nem de seu conteúdo.
Continuou guardada, como era o desejo da menina, escondida dentro do armário, que agora estava no quarto de sua irmã.

26.1.09

Conto: Uma moça.

Sentou ao seu lado no ônibus e abriu um livro de capa marrom. Ele se esforçou para ver o nome mas não conseguiu. Sentiu-se estranho de dividir com uma desconhecida um momento tão único. Ela lia. E para ele, ler um livro era entrar em uma história por completo. Ia se esquivando de cada página para não ser garupa daquele conto. Ela lia. Por uns momentos teve um pouco de dó ao ver que ela se emocionava com as palavras. Pensou na moça, no ônibus velho, no livro surrado, talvez emprestado. Ela lia. E tudo para que a moça, bonita a moça, pudesse ter histórias boas pra contar. Devia trabalhar em alguma das casa da região. Era bonita a moça para andar sozinha, ainda pensou. Ia descer. Não queria atrapalhar. Ela lia.Emocionada. Ele queria pedir licença. Era bem bonita a moça. Sem querer desabou seus olhos no decote. Ele olhava. Ela não notava ou não se importava. Na cabeça dele passavam mais histórias que naquele livro. Histórias que ela nunca poderia ler. Que jamais seriam escritas. Nem vividas. O ponto estava chegando. E o balanço do ônibus o fazia esquecer disso constantemente.Levantou, a olhou de cima, ela concentrada não olhou de volta. Não precisava, não eram seus olhos que ele buscava. Encostou a mão em seu ombro. Não sentiu nada. Nem ela. Apenas olhou para ele e para fora. Também desceria. Levantou e saiu. Ele atrás. Andou depressa na frente e entrou em uma das casas. O letreiro piscava. Ela guardou o livro. Ele entrou também. Algumas das suas histórias iam sair do papel.

4.11.08

Contos em até 140 caracteres.

De manhã, dormindo na areia e com o sol na cara, dava pra ver que ela não era tão jovem quanto havia falado. Envelheceu 10 anos ali no sol.

16.10.08

Conto: Peitos

Quando ela sentou no ônibus, reparou na menina que estava à sua frente. Não mais que 5 anos, quase 60 a menos que a mulher ao lado dela.
Falava pouco a criança, e quase dormia a senhora, quando entrou a moça do decote. Poderia se dizer generoso, se mostrar aquilo aos outros fosse bondade. E não era de agradar a muitos, embora estivesse bem exposto.
A menina olhou, sem piscar.
Vó, quando eu vou ter peitos assim? perguntou pra senhora, que assustou.
Mas por que você quer um desses, menina?
Ah vó, disse ela meio envergonhada, é bonito.
A vó não deu mais ouvidos. No banco de trás ela riu e também não ligou.
Entre a inveja e o desejo precoces, as duas preferiram ignorar.

6.10.08

Conto - A frase

Existem frases que fazem a gente pensar, que mudam a nossa forma de ver as coisas ou simplesmente deixam claro que ali, naquele momento, a casa caiu.
Como John Lenno quando disse 'o sonho acabou' ou Monica Lewinsky quando gritou, desconfortável, 'na boca não, Bill'.
No cu, Roberto, no cu.
Roberto nunca havia ouvido aquilo. 26 anos. Nunca ouviu. Um esporro que ele levava pela primeira vez. Não na empresa, na vida. Classe média, quase alta, filho único, nunca tinha ouvido um não. Muito menos um No cu. Principalmente da mãe, que não era mulher de contrariá-lo, muito menos com esse linguajar. Pra ela, era coisa pra falar com filho que não sabe quem é o pai. E ele sabia. Trabalhava pro pai todo dia.
Deve ser por isso que nunca ouvira um No cu antes. Foi pesado, mas se sentia orgulhoso. Voltou pra casa pensando no significado ddaquilo. Ignorou o nome e se concentrou na frase. No cu. Curta, direta, perfeita. Era o que ele mesmo estava sentindo, mas foi quem ouviu. Sonhava ter dito, mas se vangloriava só por ter dado motivo para aquilo ecoar no corredor. No cu, Roberto. Tira o nome. No cu. Duas palavras. Um resumo. Em+o + cu. Preposição + artigo + substantivo comum.
Comum pra língua, porque o do Roberto era muito próprio. Duas palavars que diziam tanto. 4 letras. Sem repetição. Uma construçãoo de fazer parnasiano jogar a toalha. E o vocativo, no final, pra dar ênfase do cu de quem devia ser sofrida a ação da frase. No cu, Roberto. Lembrava. REpetia no final, com menos força. NO CU, ROBERTO, no cu. Suave. Tão suave para falar quanto para ouvir. Nenhum verbo. Nenhuma ação descrita. Nem precisava. Uma frase quase bíblica, com a repetição dando um tom professoral. Em verdade, em verdade vos digo: No cu, Roberto, no cu. Viu Jesus, na Cruz, repetindo para o Ladrão da tortura ao lado: No cu, ladrão, no cu. Fez um passeio pelas grandes personalidades que deviam ter usado a frase. Hitler deve ter dito em um discurso qualquer No cu, judeuzada. Churchill bradou de volta, No cu, ariano. Madre Teresa, Ghandi, Elvis, Mandela, No cu, Roberto. Sem o nome. No cu. Imaginou o nome que devia ter pra combinar melhor com aquilo. Não dormiu. A sensação de poder em uma frase. No cu. Nem sua mulher escapou. No cu, Marisa. Passou uns dias ainda repetindo a frase que julgava perfeita: No cu, Nestor. O nome perfeito. Nunca tinha ouvido aquilo. Nunca.

3.10.08

Conto - No escritório

- Ela trabalha no escritório como se fosse uma vagabunda, Waldir, falo-te a verdade, meu amigo.
- Não zombes de mulher dos outros, Loiola. Por mais talentoso que sejas com as pequenas.
- Pois aposto que não é virgem!
- Abandonara o marido?
- Não Waldir, claro que não. Pois não te disse? Vai ao escritório com decotes de enrubrecer o mais cafajeste dos cafetões. E umas saias, meu amigo, e umas saias.... tão curtas que poriam o Papa em pecado.
- E o que fazes?
- Olho. E como olho. Mas só posso olhar. Sou casado, Waldir. Sabes que respeito minha mulher.
- És casado mas não és de ferro, homem. Sua mulher não saberás, Loiola. Está trancada naquela baleia há anos, não quer saber de teu trabalho.
- E como posso dizer à pequena que o meu interesse é simplesmente esse? Não levarás dois dias para azucrinar-me a vida e tirar-me a paciência.
- Mas vale a pena, Loiola. Ouça o que te digo: Mais vale um abraços de coxas novas que a eternidade entre a carne velha.
- Vou embora Waldir. Resolverei esse assunto com a pequena. Esqueça nossa conversa, amigo.
- Vai, aposto que não resistirás muito, teu corpo de homem sobrepujará tua cabeça de padre.

Loiola passa a noite em claro, pensando no que acabara de conversar. A mulher dormia quando ele chegou. Não possuía filhos. Na verdade não possuía nem mesmo a mulher havia alguns anos.

- O Waldir deve ter razão. Ela não vai desconfiar. Está aqui dentro há anos, mal sabe o que faço. E não quer saber. Eu ainda estou vivo, porra. E não será ela a matar o que há em mim pulsando. Ah, essa pequena não perde por esperar. Ficou tanto tempo esperando, agora vai ter o que merece. Ah se vai.

No dia seguinte, foi ao escritório. Perfumado, alisado, alinhado e engomado pra brincar com Juraci. Ela chegou como sempre, decotada, cheirosa, cheia de graça e com uma saia curta. Loiola olhou-a com desejo, no que foi prontamente retribuído. – Pois aposto que não é virgem – pensou. Ela se abaixava para pegar os documentos na gaveta, deixando os seios à mostra. Ele passava por trás dela roçando em suas costas e ela suspirava.

– Mas que bela raba! - exclamou.

Ela olhou assustada.

- Espere, senhor Loiola. O senhor está me entendendo mal.

Ele cortou logo aquele papinho frouxo, rasgando seu vestido e colocando as mãos firmemente em suas nádegas. Excitava-se com os gritos e a força daquela mulher.
Há muito tempo não sentia aquele prazer. Juraci tentava se livrar, mas ele tentava entrar de qualquer forma.
- Você é uma puta. Uma puta, sim. Uma vagabunda como você não se assusta com o que tenho entre as pernas, não é?
Virando-se para ele, Juraci respondeu:
- Não, Senhor Loiola. É até menor do que o meu.

Conto - Trem

Desceu do trem para ir para casa. Ele desceu por outra porta. No caminho para a escada ela o viu. Ele olhou, mas disfarçou. Se encontrariam. Ela pensou em esperar para que ele subisse a escada na frente, mas foi ele quem atrasou o passo.
Dois degraus. 'Me deixou passar para me olhar por trás (dois degraus)ou pra não me dar chance (dois degraus) de olhar pra ele de novo?' Dois degraus. 'Foda-se. (dois degraus) Não teria como pagar mesmo.'